quarta-feira, 22 de agosto de 2012
‘As Paredes’ têm ouvidos: Este Festival não é para ‘Totós’!
“Batem leve, levemente, como quem chama por mim. Será chuva? Será gente? Gente não é, certamente e a chuva não bate assim”. Fui ver…eram as duas numa só: o ‘EDP Paredes de Coura – 2012’!
Vamos por partes, em primeiro lugar, fica um sincero agradecimento ao poeta Augusto Gil e à cedência da “Balada da Neve” para o início do texto. A verdade é que foi muita chuva (e outro tanto de lama) para muita gente neste prelúdio de festival. De tal sorte, que se o certame musical arriscasse uma dose superior de internacionalização, bem poderia chamar-se MUD – Paredes de Coura, quem presenciou o sucedido na edição que acabou de findar irá por certo concordar com a asserção.
Um dia e meio de chuva intensa e camadas de lama em doses industriais nunca vistas, nem sequer no célebre “Ano da Galocha”, estatuto imbatível que 2006 ostentou até agora, marcam de forma indelével a iniciativa musical que em 2012 completou 20 anos de existência. Impermeáveis de 2 euros a custarem 10 vezes mais, galochas de 5 euros com taxa adicional desconhecida a valerem 15, fazem com que os comerciantes da vila do Alto Minho não ousem qualquer impropério contra a miríade jovem, que de forma pacífica invadiu as paragens de Coura.
Contudo, este é o Festival em que, apesar de tudo, a música venceu esse namoro nefasto entre a chuva e a lama, uma vez mais. Até porque ‘Paredes de Coura’ é mesmo para estoicos. Os ‘fiéis musicais’ parecem ter ouvido o Arcebispo de Braga uns dias antes e encetaram uma verdadeira “maratona do amor”… ao ‘EDP Paredes de Coura’. E foi pelo amor à música que permaneceram para lá da intempérie (alguns de forma mais pragmática e malévola dirão que foi pelos 80 euros despendidos para o efeito).
Paredes De Coura , 14, 15, 16, 17 , 18 Agosto 2012
Fotos:Paulo Pimenta
(alguns de forma mais pragmática e malévola dirão que foi pelos 80 euros despendidos para o efeito).
No capítulo da prestação das bandas/artistas e seguindo uma linearidade cronológica, em dia de receção a caloiros e repetentes, B Fachada pareceu algo desenquadrado do contexto e já se lhe viram melhores prestações, os Brass Wires Orchestra afirmaram-se como os mais consensuais no alinhamento, com pormenores que evidenciam a existência de margem de progressão desde que venceram o “Hard Rock Calling Lisboa” e de mais recentemente terem participado no “Boom Festival” (palco Sacred Fire).
E seguindo os cânones de um crescendo pretendido, a 14 de Agosto acentuaram-se a chuva e o temporal, bem como a cadência dos ritmos. E há sobretudo três culpados disso: os Japandroids, os Tune-Yards e os portugueses Paus.
Os canadianos fizeram furor ao longo da atuação e suscitaram elevado interesse nos presentes, e a curiosidade justificou-se de todo: fazendo uso de recursos minimais, ou seja, de uma simples bateria (David Prowse) e de uma guitarra (Brian King), a que adicionam as vozes, a dupla faz emanar um som cativante e enérgico. Entre as saudades que deixaram e o tempo de um regresso a duração, espera-se, vai ser curta. Já há livro de reclamações, há muito quem queira voltar a ouvir “The House That Heaven built” e já agora as restantes de Celebration Rock (2012) e de Post-Nothing (2009), isto para não faltar nada.
E se os Japandroids deixaram o público com água-na-boca, os Tune-Yards constituíram uma das surpresas saídas do palco secundário e, bem pode dizer-se, foram responsáveis por um dos melhores concertos em todo o Festival.
Merril Garbus, (the Woman in Red), surge em palco às 21h30, quase à hora marcada, acompanhada pelo lote de músicos que a acompanha nas façanhas musicais. A líder, apesar de tímida, irradia simpatia e apresenta-se portadora de um instrumento cada vez mais utilizado, o já célebre ukelele (utensílio musical que descende de antepassados portugueses como a braguinha, o machete e o rajão, que os emigrantes madeirenses levaram para o Havai). Party Can abre as hostilidades e soa incrivelmente bem, pouco depois Gangsta e Powa assumem a condição de canções sedutoras para um público rendido de forma inesperada e precoce. Ao longo da atuação a chuva afina pelo mesmo diapasão e faz tréguas por instantes, quase em toada de reverência. My Country sela a garantia de qualidade três quartos de hora depois. Toda uma miscelânea de ritmos, que se passeia pelo r&b, experimental, wonky pop e afro-beat acabaram, de forma inesperada, por criar uma pequena legião de fãs. E para não esquecer: uma merecida vénia à secção de sopros.
Stephen Malmkus & The Jicks foi penalizado pelo bater em retirada dos festivaleiros já (há) muito fustigados pela impiedosa chuva que se tinha feito sentir. O coletivo, chefiado pelo ex-Pavement, mostrou-se competente, como seria de esperar.
E é da mais elementar justiça dizer-se que os destaques do primeiro dia são tributários da apresentação dos Paus. A banda cuja bateria siamesa é partilhada por Hélio Morais (baterista dos Linda Martini) e Joaquim Albergaria (vocalista dos “Vicious 5”) conseguiu animar os resistentes e o som quase tribal que se fez ouvir no Palco Vodafone ficou no ouvido e na memória e auxiliou os festivaleiros a fazerem a catarse do dilúvio que sobre eles se abateu. Albergaria gozou com a chuva, trauteou algo parecido com Roberto Carlos e cantou um pequeno excerto de “Umbrella”, de Rihanna, para delírio dos presentes.
Depois da tempestade…vem o ‘Bonanza’! E ao terceiro dia, ‘conforme as escrituras’, fez-se luz…solar! Os banhos de chuva, lama (e quiçá argila) foram finalmente substituídos pelo Sol, os festivaleiros encheram a praia fluvial do Taboão e ‘esvaziaram’ o recinto aquando do primeiro concerto da tarde, o dos Kitty Daisy & Lewis. A banda britânica, que reúne os irmãos Durham: Kitty, Daisy e Lewis, teve um escasso número de espectadores, muito por culpa do Sol que andou ausente nos dois primeiros dias e regressou em força, precisamente, a 15 de Agosto. Foi pena o horário, pois é certo que teriam constituído mais um momento de eleição. Para os Midlake, por volta das 19:45 horas, o cenário estava já bastante composto. Os texanos foram uma escolha a preceito, as melodias soam com a mansidão perfeita para o momento final de um filme, um misto de Crosby’s, Stills, Nash & Young, com Fleet Foxes pelo meio, e uma pitada dos mais recentes Other Lives. É certo que o estatuto que lhes foi conferido pelo público não foi o de meros incógnitos, mas a ansiedade pelas bandas vindouras capitalizava-se nesse momento, saíram e, talvez injustamente, sem fazer mossa. A temperatura ia subindo para os Temper Trap, a banda australiana, repetente em Paredes de Coura, onde atuou em 2009, conquista os muitos que se deslocaram ao anfiteatro verde para os irem ver, fica, contudo, a ideia de que vive muito do primeiro álbum, “Conditions”. E isso percebe-se logo ali, por volta das 21:00 horas, quando a banda de Melbourne inicia o desfilar de canções. “Love Lost” é reconhecida de imediato, mas “Sweet Disposition” é o tema que leva ao rubro os assistentes. Concederam um bom concerto, com direito a encore, ainda o programa do dia ia a meio, coisa nada fácil. O balanço é positivo, a banda apresenta-se em palco com mestria, cria comunhão com os fãs, mas há uma clara incerteza quanto ao que poderão fazer no futuro, sem viverem à sombra do primeiro disco, a ver vamos. O primeiro ‘momento EDP’ acontece com os Sleigh Bells, a banda esteve na iminência de causar um problema diplomático e sobretudo ecológico, no Coura não há lugar para uma mini-hídrica, quanto mais para uma barragem de grande porte (até o muro de amplificadores Marshall sugere as paredes da dita)! Mais do que um espetáculo, os nova-iorquinos liderados pela frenética Alexis Krauss foram, não é redundante repeti-lo, uma autêntica ‘descarga elétrica’. Duas guitarras diabólicas, alguns sons sintetizados, e uma voz despudorada puseram os cabelos em pé a quem assistiu.
Quem rezou pelos dEUS, fez bem. A banda belga afirmou-se uma vez mais pela competência em palco, mesmo com as adversidades técnicas a toldarem alguns dos momentos da atuação. Os problemas com o som evidenciaram-se no início e, resultado disso, “The Architect” não saiu incólume. Com “Instant Street” demonstraram todo o vigor musical que se lhes reconhece, a parte inicial de “Suds & Soda” põe toda a gente a abanar a cabeça para a frente e para trás, e ainda sobra tempo para uma heresia peculiar: a de ver um flamengo cantar um tema em francês. E o momento de puro êxtase musical chega-nos com “Bad Timing”, a carimbar um concerto que soube a pouco, e é sempre assim quando as coisas estão a correr bem.
Por seu turno, os Digitalism converteram o recinto numa pista de dança, num cenário estilizado com um adereço que parece assemelhar-se ao coração que simboliza a Capital Nacional da Cultura – Guimarães 2012, pura coincidência.
Uma nota de realce para Patrick Watson, que às 21:45, provou ser merecedor de ‘outro estrado’ ao atrair tanta gente para o palco secundário e foram muitos os que para lá se deslocaram. Talvez a RITMOS pense em contactá-lo para um lugar bem mais adequado e em conformidade com a música que pratica, fica a dica para o Festival para Gente Sentada.
Ao quarto dia, com o sol consolidado, as galochas e impermeável na tenda, os campistas continuam a assaltar a praia fluvial do Taboão, a banhar-se no Coura, a ouvir poesia, a curtir música jazz, tudo isto sem ninguém os ter mandado ‘estudar relvas’, deitaram-se sobre elas com as toalhas e protegidos pelos guarda-sóis fornecidos pelo patrocinador, que agora deixaram de os proteger da chuva, como acontecia nos dia anteriores, para assumirem a sua função natural.
No palco principal, os Of Montreal exibiram a indumentária mais exótica de todos os artistas presentes no Festival. Com um make-up algo dramático, trajado a vermelho, e a contrastar com azul das vestes hippies do guitarrista, Kevin Barnes, o líder e vocalista, mais parece ter ido ao “Barbeiro Yorn”, que por estes dias retirou alguns escalpes a campistas a partir de uma bizarra carroça. Patentearam um psicadelismo festivo apreciado pelos espectadores que, por esta altura, já povoavam o recinto em número muito assinalável. E o final do concerto com a seminal “The Past Is a Grotesque Animal" soou (suou) a algo sublime.
Os The Whitest Boy Alive, projeto liderado pelo simpático Erlend Øye, dos nossos bem conhecidos Kings of Convenience, foram uma espécie de pretexto para mais uma oportunidade do músico norueguês regressar a um local que ele próprio apelida de “paradisíaco”. Concordâncias à parte, o coletivo conseguiu surpreender os presentes com uma prestação musical causadora de empatia.
No palco secundário, os School of Seven Bells agitavam as hostes com uma performance musical digna de registo. Alejandra Deheza e Benjamim Curtis, a dupla nova-iorquina, apresentaram-se bem acompanhados em palco para um concerto em que fizeram desfilar temas do derradeiro álbum “Ghostory”, como “Low Times”, de resto um dos momentos mais brilhantes do show, mas também fizeram incursões por Disconnect from Desire, o disco editado em 2010, e que deram a provar à assistência, através de “Windstorm”, logo a abrir. Alpinisms, de 2008, também não foi esquecido, como se comprovou, por exemplo, no final com “Half Asleep". Sem qualquer margem para dúvidas, constituíram um momento a sublinhar na edição de 2012.
Anna Calvi é daqueles casos de virtuosismo incompreendidos, a prestação em Paredes de Coura é a prova cabal disso mesmo. Em palco a figura de Calvi, vestida de preto, saltos altos, cabelos louros apanhados atrás a sobressaírem, e de guitarra em riste, é venerável. Arriscou “Surrender” de Elvis Presley, presenteou o público com os já clássicos “Desire” e “Jezebel”, mas nem assim teve um eco de retorno que fosse. A toada foi sempre morna e, na verdade, o anfiteatro verde de Coura revelou não ser o sítio ideal para o diapasão da britânica. Ainda recentemente, no Hard Club, no Porto, a imagem deixada pela cantautora indie tinha sido bem diferente. Regressou aos bastidores sem a luminosidade de um fogacho.
Quem estava mesmo destinado a cantar vitória eram os Kasabian, a banda de Leicester, e cabeça de cartaz. Identificados em certa medida com os Oasis, Verve, Stone Roses e Primal Scream, os britânicos não enjeitaram o convite para dizer que estão vivos. E a entrada prometia, com o irrequieto Tom Meighan a percorrer de lés-a-lés o palco em passeios rápidos e constantes e a contagiar o público, que arriscou as primeiras doses de mosh, logo ali.
Dos quatro álbuns editados Kasabian, de 2004, Empire, de 2006, West Ryder Pauper Lunatic Asylum, de 2009, e Velociraptor!, de 2011, nenhum saiu ileso de Paredes de Coura, todos foram versados, aqui e ali com o auxílio do guitarrista Sergio Pizzorno, ele que é o principal autor dos temas da banda. E das vinte e uma canções tocadas, destacam-se “Days are forgotten”, no começo, lá mais a tender para o meio “Let's Roll Just Like We Used To” e “Underdog”, num concerto que se pautou por alguns momentos explosivos e outros em toada calma, Tom anuncia “Goodbye Kiss” e fica-se a pensar que a coisa acaba… puro engano! Há ainda “Praise You” (uma versão de Fat Boy Slim) e “Lost Souls for Ever” até que o concerto acabe. Uma pausa, um regresso em força para mais três temas, entre os quais se conta o ‘pirómano’ “Fire”, tocado à “Beatles”, para fazer as vezes de genérico final, e que genérico, bem pode dizer-se.
No rodapé da noite, que o mesmo é dizer no capítulo After Hours, os Crystal Fighters subiram ao palco e ao pódio, como um dos projetos vitoriosos. As almas festivaleiras saíram positivamente agitadas do Palco Vodafone FM.
‘Ornatos’ – Uma geração ao espelho/Deus é um astronauta caído em ‘Paredes’ Quase em começo de dia, o destaque vai para os Best Youth, a dupla constituída por Catarina Salinas e Ed Rocha Gonçalves, aos quais se juntou um baterista, conseguiu animar a pequena multidão que se aconchegou para os ouvir no palco secundário. No palco principal desfilaram ainda os Ladrões do Tempo e os Capitão Fausto, e à parte o facto de integrem algumas figuras de proa, sobretudo os primeiros, a sequência destas duas bandas não foi merecedora de grandes acenos, apesar de uma legião de fãs temporária dos segundos se ter feito sentir. Um dos grandes momentos desta edição de Paredes de Coura foi protagonizado pelos God Is an Astronaut, os irlandeses conseguiram emanar uma energia mágica junto de muitos que se juntaram para os ver no palco secundário. Um sortilégio ser conduzido por tamanha viagem astral, ritmada ao sabor fluído das guitarras, serão astronautas ou druidas musicais? Tanto monta, com cinco álbuns editados, o coletivo alicerçou a sua prestação sobretudo nos dois últimos: o homónimo “God Is na Astronaut” e “Age of the Fifth Sun” apeteceu dizer: voltem sempre! “Echoes” ainda ecoam por aí. No palco principal The Go! Team entram a meio do programa e conseguem ser as lebres mais dignas para a corrida final. Às 22:40 entram em ação os Dead Combo, a dupla Tó Trips e Pedro Gonçalves que, não é exagero dizê-lo, deveria ser motivo de orgulho para o nosso país (talvez o venha a ser quando Tarantino os convidar para uma banda sonora). Desta vez converte-se em trio, com a presença de Alexandre Frazão aos destinos da bateria. E mais tarde, ainda que de forma fugaz, vai criar-se um quarteto quando Peixe dos Ornatos Violeta é convidado para os acompanhar. “A Menina Dança”, “Eléctrica Cadente” e “Pacheco” são das mais celebradas e mesmo sendo a banda que antecede os mais que ansiados ‘Ornatos’, há um encore para cumprir, a preceito, diga-se. Os níveis de ansiedade estavam ao rubro para o último concerto do dia no palco principal, os fiéis depositários das expectativas dos peregrinos melómanos eram, como já se sabia, os Ornatos Violeta. A banda portuense preparava-se há muito para o chamado ‘concerto de ressuscitação’ ao 5º dia, em Paredes de Coura. O mesmo é dizer, volvida uma década, desde um final de travo amargo do coletivo para uma legião de fãs, eles aí estavam de novo. À hora do almoço de sexta-feira, no sítio onde a organização providencia os almoços para o ‘staff’ e artistas, ‘o dono das teclas’, Elísio Donas, confessava-nos, de forma taxativa: “Estou nervoso!”. A catarse só a faria doze horas depois.
Com cerca de uns 15 minutos de atraso em relação ao previsto, Manel Cruz, Nuno Prata, Peixe, Elísio Donas e Kinörm pisam finalmente o palco, para gáudio das 25 mil almas presentes. E arrasam com “Tanque”, uma verdadeira ‘entrada de chaimite’, correspondida por todos. Em boa verdade, era uma geração que ficou órfã deles, que se queria ver ao espelho. “Chaga” vai pelo mesmo caminho e “Dia Mau” idem. “O Monstro Precisa de amigos” haveria de ser tocado na íntegra, ao longo do concerto. O delírio vigorava nas hostes e as palmas recolhidas fizeram com que Manel Cruz repetisse “Muito Bom!” uma série de vezes. Mais emocionalmente prosaico foi um rendido “Não contava com isto, foda-se!”, soltado pelo vocalista. A coisa não era para menos. Manel Cruz ousou um banho de multidão (essa mesma que estava de forma incondicional e em uníssono a tributar a banda) eis um bom pretexto e sinónimo de stage diving. O concerto roçou o perfeito, não fora a escolha sempre subjetiva e respeitável dos temas dos dois ‘encores’ e isso teria acontecido. Mas não são eles que cantam as imperfeições?
Por falar em imperfeições, quando já quase tudo foi dito, falta dizer que este ano Paredes de Coura contou com um número substancialmente mais baixo de aderentes do outro lado da fronteira. Acrescente-se ainda que o fotojornalista Paulo Pimenta já vai poder adicionar as fotografias da 20ª edição, caso em 2013 o Centro Cultural de Paredes de Coura queira levar a cabo outra mostra retrospetiva, como a que esteve patente ao público até à passada sexta-feira. Há ‘Paredes de Concha…Acústica’, mas só em 2013.
João Fernando Arezes
Vamos por partes, em primeiro lugar, fica um sincero agradecimento ao poeta Augusto Gil e à cedência da “Balada da Neve” para o início do texto. A verdade é que foi muita chuva (e outro tanto de lama) para muita gente neste prelúdio de festival. De tal sorte, que se o certame musical arriscasse uma dose superior de internacionalização, bem poderia chamar-se MUD – Paredes de Coura, quem presenciou o sucedido na edição que acabou de findar irá por certo concordar com a asserção.
Um dia e meio de chuva intensa e camadas de lama em doses industriais nunca vistas, nem sequer no célebre “Ano da Galocha”, estatuto imbatível que 2006 ostentou até agora, marcam de forma indelével a iniciativa musical que em 2012 completou 20 anos de existência. Impermeáveis de 2 euros a custarem 10 vezes mais, galochas de 5 euros com taxa adicional desconhecida a valerem 15, fazem com que os comerciantes da vila do Alto Minho não ousem qualquer impropério contra a miríade jovem, que de forma pacífica invadiu as paragens de Coura.
Contudo, este é o Festival em que, apesar de tudo, a música venceu esse namoro nefasto entre a chuva e a lama, uma vez mais. Até porque ‘Paredes de Coura’ é mesmo para estoicos. Os ‘fiéis musicais’ parecem ter ouvido o Arcebispo de Braga uns dias antes e encetaram uma verdadeira “maratona do amor”… ao ‘EDP Paredes de Coura’. E foi pelo amor à música que permaneceram para lá da intempérie (alguns de forma mais pragmática e malévola dirão que foi pelos 80 euros despendidos para o efeito).
Paredes De Coura , 14, 15, 16, 17 , 18 Agosto 2012
Fotos:Paulo Pimenta
(alguns de forma mais pragmática e malévola dirão que foi pelos 80 euros despendidos para o efeito).
No capítulo da prestação das bandas/artistas e seguindo uma linearidade cronológica, em dia de receção a caloiros e repetentes, B Fachada pareceu algo desenquadrado do contexto e já se lhe viram melhores prestações, os Brass Wires Orchestra afirmaram-se como os mais consensuais no alinhamento, com pormenores que evidenciam a existência de margem de progressão desde que venceram o “Hard Rock Calling Lisboa” e de mais recentemente terem participado no “Boom Festival” (palco Sacred Fire).
E seguindo os cânones de um crescendo pretendido, a 14 de Agosto acentuaram-se a chuva e o temporal, bem como a cadência dos ritmos. E há sobretudo três culpados disso: os Japandroids, os Tune-Yards e os portugueses Paus.
Os canadianos fizeram furor ao longo da atuação e suscitaram elevado interesse nos presentes, e a curiosidade justificou-se de todo: fazendo uso de recursos minimais, ou seja, de uma simples bateria (David Prowse) e de uma guitarra (Brian King), a que adicionam as vozes, a dupla faz emanar um som cativante e enérgico. Entre as saudades que deixaram e o tempo de um regresso a duração, espera-se, vai ser curta. Já há livro de reclamações, há muito quem queira voltar a ouvir “The House That Heaven built” e já agora as restantes de Celebration Rock (2012) e de Post-Nothing (2009), isto para não faltar nada.
E se os Japandroids deixaram o público com água-na-boca, os Tune-Yards constituíram uma das surpresas saídas do palco secundário e, bem pode dizer-se, foram responsáveis por um dos melhores concertos em todo o Festival.
Merril Garbus, (the Woman in Red), surge em palco às 21h30, quase à hora marcada, acompanhada pelo lote de músicos que a acompanha nas façanhas musicais. A líder, apesar de tímida, irradia simpatia e apresenta-se portadora de um instrumento cada vez mais utilizado, o já célebre ukelele (utensílio musical que descende de antepassados portugueses como a braguinha, o machete e o rajão, que os emigrantes madeirenses levaram para o Havai). Party Can abre as hostilidades e soa incrivelmente bem, pouco depois Gangsta e Powa assumem a condição de canções sedutoras para um público rendido de forma inesperada e precoce. Ao longo da atuação a chuva afina pelo mesmo diapasão e faz tréguas por instantes, quase em toada de reverência. My Country sela a garantia de qualidade três quartos de hora depois. Toda uma miscelânea de ritmos, que se passeia pelo r&b, experimental, wonky pop e afro-beat acabaram, de forma inesperada, por criar uma pequena legião de fãs. E para não esquecer: uma merecida vénia à secção de sopros.
Stephen Malmkus & The Jicks foi penalizado pelo bater em retirada dos festivaleiros já (há) muito fustigados pela impiedosa chuva que se tinha feito sentir. O coletivo, chefiado pelo ex-Pavement, mostrou-se competente, como seria de esperar.
E é da mais elementar justiça dizer-se que os destaques do primeiro dia são tributários da apresentação dos Paus. A banda cuja bateria siamesa é partilhada por Hélio Morais (baterista dos Linda Martini) e Joaquim Albergaria (vocalista dos “Vicious 5”) conseguiu animar os resistentes e o som quase tribal que se fez ouvir no Palco Vodafone ficou no ouvido e na memória e auxiliou os festivaleiros a fazerem a catarse do dilúvio que sobre eles se abateu. Albergaria gozou com a chuva, trauteou algo parecido com Roberto Carlos e cantou um pequeno excerto de “Umbrella”, de Rihanna, para delírio dos presentes.
Depois da tempestade…vem o ‘Bonanza’! E ao terceiro dia, ‘conforme as escrituras’, fez-se luz…solar! Os banhos de chuva, lama (e quiçá argila) foram finalmente substituídos pelo Sol, os festivaleiros encheram a praia fluvial do Taboão e ‘esvaziaram’ o recinto aquando do primeiro concerto da tarde, o dos Kitty Daisy & Lewis. A banda britânica, que reúne os irmãos Durham: Kitty, Daisy e Lewis, teve um escasso número de espectadores, muito por culpa do Sol que andou ausente nos dois primeiros dias e regressou em força, precisamente, a 15 de Agosto. Foi pena o horário, pois é certo que teriam constituído mais um momento de eleição. Para os Midlake, por volta das 19:45 horas, o cenário estava já bastante composto. Os texanos foram uma escolha a preceito, as melodias soam com a mansidão perfeita para o momento final de um filme, um misto de Crosby’s, Stills, Nash & Young, com Fleet Foxes pelo meio, e uma pitada dos mais recentes Other Lives. É certo que o estatuto que lhes foi conferido pelo público não foi o de meros incógnitos, mas a ansiedade pelas bandas vindouras capitalizava-se nesse momento, saíram e, talvez injustamente, sem fazer mossa. A temperatura ia subindo para os Temper Trap, a banda australiana, repetente em Paredes de Coura, onde atuou em 2009, conquista os muitos que se deslocaram ao anfiteatro verde para os irem ver, fica, contudo, a ideia de que vive muito do primeiro álbum, “Conditions”. E isso percebe-se logo ali, por volta das 21:00 horas, quando a banda de Melbourne inicia o desfilar de canções. “Love Lost” é reconhecida de imediato, mas “Sweet Disposition” é o tema que leva ao rubro os assistentes. Concederam um bom concerto, com direito a encore, ainda o programa do dia ia a meio, coisa nada fácil. O balanço é positivo, a banda apresenta-se em palco com mestria, cria comunhão com os fãs, mas há uma clara incerteza quanto ao que poderão fazer no futuro, sem viverem à sombra do primeiro disco, a ver vamos. O primeiro ‘momento EDP’ acontece com os Sleigh Bells, a banda esteve na iminência de causar um problema diplomático e sobretudo ecológico, no Coura não há lugar para uma mini-hídrica, quanto mais para uma barragem de grande porte (até o muro de amplificadores Marshall sugere as paredes da dita)! Mais do que um espetáculo, os nova-iorquinos liderados pela frenética Alexis Krauss foram, não é redundante repeti-lo, uma autêntica ‘descarga elétrica’. Duas guitarras diabólicas, alguns sons sintetizados, e uma voz despudorada puseram os cabelos em pé a quem assistiu.
Quem rezou pelos dEUS, fez bem. A banda belga afirmou-se uma vez mais pela competência em palco, mesmo com as adversidades técnicas a toldarem alguns dos momentos da atuação. Os problemas com o som evidenciaram-se no início e, resultado disso, “The Architect” não saiu incólume. Com “Instant Street” demonstraram todo o vigor musical que se lhes reconhece, a parte inicial de “Suds & Soda” põe toda a gente a abanar a cabeça para a frente e para trás, e ainda sobra tempo para uma heresia peculiar: a de ver um flamengo cantar um tema em francês. E o momento de puro êxtase musical chega-nos com “Bad Timing”, a carimbar um concerto que soube a pouco, e é sempre assim quando as coisas estão a correr bem.
Por seu turno, os Digitalism converteram o recinto numa pista de dança, num cenário estilizado com um adereço que parece assemelhar-se ao coração que simboliza a Capital Nacional da Cultura – Guimarães 2012, pura coincidência.
Uma nota de realce para Patrick Watson, que às 21:45, provou ser merecedor de ‘outro estrado’ ao atrair tanta gente para o palco secundário e foram muitos os que para lá se deslocaram. Talvez a RITMOS pense em contactá-lo para um lugar bem mais adequado e em conformidade com a música que pratica, fica a dica para o Festival para Gente Sentada.
Ao quarto dia, com o sol consolidado, as galochas e impermeável na tenda, os campistas continuam a assaltar a praia fluvial do Taboão, a banhar-se no Coura, a ouvir poesia, a curtir música jazz, tudo isto sem ninguém os ter mandado ‘estudar relvas’, deitaram-se sobre elas com as toalhas e protegidos pelos guarda-sóis fornecidos pelo patrocinador, que agora deixaram de os proteger da chuva, como acontecia nos dia anteriores, para assumirem a sua função natural.
No palco principal, os Of Montreal exibiram a indumentária mais exótica de todos os artistas presentes no Festival. Com um make-up algo dramático, trajado a vermelho, e a contrastar com azul das vestes hippies do guitarrista, Kevin Barnes, o líder e vocalista, mais parece ter ido ao “Barbeiro Yorn”, que por estes dias retirou alguns escalpes a campistas a partir de uma bizarra carroça. Patentearam um psicadelismo festivo apreciado pelos espectadores que, por esta altura, já povoavam o recinto em número muito assinalável. E o final do concerto com a seminal “The Past Is a Grotesque Animal" soou (suou) a algo sublime.
Os The Whitest Boy Alive, projeto liderado pelo simpático Erlend Øye, dos nossos bem conhecidos Kings of Convenience, foram uma espécie de pretexto para mais uma oportunidade do músico norueguês regressar a um local que ele próprio apelida de “paradisíaco”. Concordâncias à parte, o coletivo conseguiu surpreender os presentes com uma prestação musical causadora de empatia.
No palco secundário, os School of Seven Bells agitavam as hostes com uma performance musical digna de registo. Alejandra Deheza e Benjamim Curtis, a dupla nova-iorquina, apresentaram-se bem acompanhados em palco para um concerto em que fizeram desfilar temas do derradeiro álbum “Ghostory”, como “Low Times”, de resto um dos momentos mais brilhantes do show, mas também fizeram incursões por Disconnect from Desire, o disco editado em 2010, e que deram a provar à assistência, através de “Windstorm”, logo a abrir. Alpinisms, de 2008, também não foi esquecido, como se comprovou, por exemplo, no final com “Half Asleep". Sem qualquer margem para dúvidas, constituíram um momento a sublinhar na edição de 2012.
Anna Calvi é daqueles casos de virtuosismo incompreendidos, a prestação em Paredes de Coura é a prova cabal disso mesmo. Em palco a figura de Calvi, vestida de preto, saltos altos, cabelos louros apanhados atrás a sobressaírem, e de guitarra em riste, é venerável. Arriscou “Surrender” de Elvis Presley, presenteou o público com os já clássicos “Desire” e “Jezebel”, mas nem assim teve um eco de retorno que fosse. A toada foi sempre morna e, na verdade, o anfiteatro verde de Coura revelou não ser o sítio ideal para o diapasão da britânica. Ainda recentemente, no Hard Club, no Porto, a imagem deixada pela cantautora indie tinha sido bem diferente. Regressou aos bastidores sem a luminosidade de um fogacho.
Quem estava mesmo destinado a cantar vitória eram os Kasabian, a banda de Leicester, e cabeça de cartaz. Identificados em certa medida com os Oasis, Verve, Stone Roses e Primal Scream, os britânicos não enjeitaram o convite para dizer que estão vivos. E a entrada prometia, com o irrequieto Tom Meighan a percorrer de lés-a-lés o palco em passeios rápidos e constantes e a contagiar o público, que arriscou as primeiras doses de mosh, logo ali.
Dos quatro álbuns editados Kasabian, de 2004, Empire, de 2006, West Ryder Pauper Lunatic Asylum, de 2009, e Velociraptor!, de 2011, nenhum saiu ileso de Paredes de Coura, todos foram versados, aqui e ali com o auxílio do guitarrista Sergio Pizzorno, ele que é o principal autor dos temas da banda. E das vinte e uma canções tocadas, destacam-se “Days are forgotten”, no começo, lá mais a tender para o meio “Let's Roll Just Like We Used To” e “Underdog”, num concerto que se pautou por alguns momentos explosivos e outros em toada calma, Tom anuncia “Goodbye Kiss” e fica-se a pensar que a coisa acaba… puro engano! Há ainda “Praise You” (uma versão de Fat Boy Slim) e “Lost Souls for Ever” até que o concerto acabe. Uma pausa, um regresso em força para mais três temas, entre os quais se conta o ‘pirómano’ “Fire”, tocado à “Beatles”, para fazer as vezes de genérico final, e que genérico, bem pode dizer-se.
No rodapé da noite, que o mesmo é dizer no capítulo After Hours, os Crystal Fighters subiram ao palco e ao pódio, como um dos projetos vitoriosos. As almas festivaleiras saíram positivamente agitadas do Palco Vodafone FM.
‘Ornatos’ – Uma geração ao espelho/Deus é um astronauta caído em ‘Paredes’ Quase em começo de dia, o destaque vai para os Best Youth, a dupla constituída por Catarina Salinas e Ed Rocha Gonçalves, aos quais se juntou um baterista, conseguiu animar a pequena multidão que se aconchegou para os ouvir no palco secundário. No palco principal desfilaram ainda os Ladrões do Tempo e os Capitão Fausto, e à parte o facto de integrem algumas figuras de proa, sobretudo os primeiros, a sequência destas duas bandas não foi merecedora de grandes acenos, apesar de uma legião de fãs temporária dos segundos se ter feito sentir. Um dos grandes momentos desta edição de Paredes de Coura foi protagonizado pelos God Is an Astronaut, os irlandeses conseguiram emanar uma energia mágica junto de muitos que se juntaram para os ver no palco secundário. Um sortilégio ser conduzido por tamanha viagem astral, ritmada ao sabor fluído das guitarras, serão astronautas ou druidas musicais? Tanto monta, com cinco álbuns editados, o coletivo alicerçou a sua prestação sobretudo nos dois últimos: o homónimo “God Is na Astronaut” e “Age of the Fifth Sun” apeteceu dizer: voltem sempre! “Echoes” ainda ecoam por aí. No palco principal The Go! Team entram a meio do programa e conseguem ser as lebres mais dignas para a corrida final. Às 22:40 entram em ação os Dead Combo, a dupla Tó Trips e Pedro Gonçalves que, não é exagero dizê-lo, deveria ser motivo de orgulho para o nosso país (talvez o venha a ser quando Tarantino os convidar para uma banda sonora). Desta vez converte-se em trio, com a presença de Alexandre Frazão aos destinos da bateria. E mais tarde, ainda que de forma fugaz, vai criar-se um quarteto quando Peixe dos Ornatos Violeta é convidado para os acompanhar. “A Menina Dança”, “Eléctrica Cadente” e “Pacheco” são das mais celebradas e mesmo sendo a banda que antecede os mais que ansiados ‘Ornatos’, há um encore para cumprir, a preceito, diga-se. Os níveis de ansiedade estavam ao rubro para o último concerto do dia no palco principal, os fiéis depositários das expectativas dos peregrinos melómanos eram, como já se sabia, os Ornatos Violeta. A banda portuense preparava-se há muito para o chamado ‘concerto de ressuscitação’ ao 5º dia, em Paredes de Coura. O mesmo é dizer, volvida uma década, desde um final de travo amargo do coletivo para uma legião de fãs, eles aí estavam de novo. À hora do almoço de sexta-feira, no sítio onde a organização providencia os almoços para o ‘staff’ e artistas, ‘o dono das teclas’, Elísio Donas, confessava-nos, de forma taxativa: “Estou nervoso!”. A catarse só a faria doze horas depois.
Com cerca de uns 15 minutos de atraso em relação ao previsto, Manel Cruz, Nuno Prata, Peixe, Elísio Donas e Kinörm pisam finalmente o palco, para gáudio das 25 mil almas presentes. E arrasam com “Tanque”, uma verdadeira ‘entrada de chaimite’, correspondida por todos. Em boa verdade, era uma geração que ficou órfã deles, que se queria ver ao espelho. “Chaga” vai pelo mesmo caminho e “Dia Mau” idem. “O Monstro Precisa de amigos” haveria de ser tocado na íntegra, ao longo do concerto. O delírio vigorava nas hostes e as palmas recolhidas fizeram com que Manel Cruz repetisse “Muito Bom!” uma série de vezes. Mais emocionalmente prosaico foi um rendido “Não contava com isto, foda-se!”, soltado pelo vocalista. A coisa não era para menos. Manel Cruz ousou um banho de multidão (essa mesma que estava de forma incondicional e em uníssono a tributar a banda) eis um bom pretexto e sinónimo de stage diving. O concerto roçou o perfeito, não fora a escolha sempre subjetiva e respeitável dos temas dos dois ‘encores’ e isso teria acontecido. Mas não são eles que cantam as imperfeições?
Por falar em imperfeições, quando já quase tudo foi dito, falta dizer que este ano Paredes de Coura contou com um número substancialmente mais baixo de aderentes do outro lado da fronteira. Acrescente-se ainda que o fotojornalista Paulo Pimenta já vai poder adicionar as fotografias da 20ª edição, caso em 2013 o Centro Cultural de Paredes de Coura queira levar a cabo outra mostra retrospetiva, como a que esteve patente ao público até à passada sexta-feira. Há ‘Paredes de Concha…Acústica’, mas só em 2013.
João Fernando Arezes